Chegou ao seu destino, avisou o GPS. Eu tinha dúvidas, mas o repetido chegou ao seu destino, fez-me admitir que se calhar era mesmo ali. Optei por deixar os faróis ligados, embora o luar fosse cheio, seria mais difícil de reparar assim, na imensidão que aquela casa emanava. A tinta a rarear e as janelas com os vidros maioritariamente partidos denunciavam que a sua antiga beleza era descurada á anos. Bati á porta com a clara sensação que ninguém viria abrir. Insisti, com a mesma vontade. Ninguém. Optei por abrir, confesso, com algum medo.
O primeiro e até mesmo os seguintes passos, iriam ser acompanhados pelo pensamento que se calhar não deveria ter vindo. Arrisquei e perguntei, está aí alguém? E do silêncio, distintamente ouvi gemidos, queixumes abafados pelo cenário lúgubre daquela casa. Voltei a repetir, está aí alguém? A resposta foi a mesma, agora mais audível, agora mais assustadora. Estou aqui, ajude-me. Avancei de encontro ao pedido, a divisão principal iluminada pela lua que rasgava as portadas, permitia perceber que estava alguém caído. Precipitei-me de encontro ao corpo que estava no chão e de imediato dois olhares aterrorizados se encaravam. Ajude-me, temos de sair daqui, ele ainda está aqui. O que aconteceu, perguntei. Mas a resposta veio minada de histerismo, não há tempo a perder, ele está cá dentro. Recompus-me e tentei recompo-lo e pude finalmente perceber, que aquele infeliz tinha sido completamente esventrado, o sangue ainda fresco e quente, estava por todo o lado, na roupa no chão e agora nas minhas mãos. Percebi então a seriedade dos avisos anteriores, era imperativo sair dali, era imperativo sobreviver. Foi assim, ao tentar recuperá-lo do chão que senti alguns passos de alguém que estava já mesmo ali. Fiquei petrificado. O corpo contorceu-se como que a adivinhar algum golpe que iria ser desferido, mas foi a adrenalina do medo que me meteu em fuga. Pude perceber que agora naquele momento éramos três. O estranho saído da penumbra, terminou o que tinha começado. Enterrou um ferro no peito daquele desgraçado estoirando-lhe depois o crânio com uma marreta. E eu no meu canto, imóvel, atordoado, minado de um medo que me impedia de reagir, fosse para salvar o inevitável ou para fugir daquele pesadelo tão real. Agora é a tua vez! Não, não iria ser a minha vez. Projectei-me de imediato contra a portada, que se abriu em pedaços. A sobrevivência tinha-me injectado alguma coragem, ia tentar fugir o mais que podia, não seria ali que eu iria morrer pensei. Mas um tiro bem visado, nas costas desmoralizou-me todas as ideias que tinha planeado. Caí desamparado, com o corpo estendido e fulminado. Ia sucumbir ali e em segundos, recebia uma paulada que me inanimou.
Recuperei os sentidos, sem saber quanto tempo tinha passado. Estava no interior da casa novamente. No meio da sala, amarrado e vulnerável. Com a visão atroz, do ferro ainda espetado naquele cadáver. Á minha frente, aquele estranho, aquele assassino, aquele psicopata. E dentro de mim, a bala e o medo a disputarem-se para ver quem conseguia inflingir-me mais dor. Sabes que vou matar-te? Eu reuni algumas forças e tentei libertar-me. Perdes o teu tempo. Essas cordas vão permitir que te corte como eu quiser. Eu não ia implorar misericórdias. Soltei a raiva que me preenchia, associada ao medo e respondi, solta-me filho da puta. Ele riu-se sarcasticamente e aproximou-se. Disse que eu iria pagar tudo o que tinha feito. Que a penitência dos meus pecados ia ser expurgada com golpes fundos e dolorosos. E eu sabia os meus pecados. Sabia-os bem. Nem sequer balbuciei uma defesa que fosse válida, até porque não havia. Sabes do que falo certo, perguntou-me. Sei, claro que sei, respondi. Vamos, termina logo isto. Liberta-me a consciência de uma vez por todas. Ele riu-se novamente, esta posição de comando dava-lhe um gozo enorme e depois disse, terminam hoje os teus dias. Nunca mais violarás ninguém. Sentia-lhe o respirar e o olhar de raiva. E depois, já conformado, vi a faca erguer-se no ar e aterrar na minha barriga. Um golpe profundo e longo que me fez urrar de forma estridente. Ele aproximou-se e sussurrou-me, então? Estás a gostar? Pensavas que vinhas violar outra vez? Ahahaha. Vais morrer aqui. Nesta casa maldita. Eu já só respondia com dores insuportáveis. Ele voltou a espetar-me, agora nas pernas. E eu chorava. E agora o acto final, disse. Trouxe um espelho e colocou-me de frente dizendo, vais ver-te morrer. Vais sentir a vida a sair-te do corpo. A minha vulnerabilidade aprisionou qualquer reação. Fiquei a olhar-me, ensanguentado, derrotado, prestes a morrer mas mesmo este castigo extremo não me trouxe quaisquer remorsos. Vou morrer e pronto. E aí estava o golpe fatal! A garganta cortada. O sangue a sair vigorosamente e a aquecer-me o peito. Estou a ver-me morrer… Estou a morrer… Estou a morrer!
André Marinho ( Maio de 2016 )